Minha mãe era diretora do grupo escolar Padre Aurélio Góes, em Junqueiro. Eu tinha de 8 para 9 anos, estudava na antiga 3ª série, a minha professora era a Dona Fátima (esse negócio de chamar as professoras de tia era coisa de Maceió, com a qual nunca me identifiquei muito. Afinal, a professora não era da minha família, pensava eu...). Era um dia de sábado e tínhamos aula à tarde. Pela manhã, dia de feira, a nossa casa ficava qualhada de gente que vinha dos povoados e sítios. Umas senhoras com pano na cabeça, enrolado para fazer as vezes de estrado para as cestas com frutas e compras feitas.
Abro um parêntese. Era chato demais para mim esse entra e sai lá em casa, aos sábados. Nunca vi tanta "cumadre" e "cumpadre", tanta gente que eu não sabia de onde vinha, todos com algum dos seus tantos filhos tendo os meus pais por padrinhos. E aquele dia, que poderia ser para dormir até mais tarde, terminava sendo um dos que nos obrigava a pular da cama cedo, já com algumas certezas: casa cheia, muita gente na rua (a feira era quase em frente da nossa casa) e fígado ou carne guizada no almoço. Por isso detesto a um e a outro...
Naquele sábado, particularmente, acordei alegre. Íamos, o Cadinho e eu, brincar na casa do Serginho, porque ele ganhou um motorama: um boneco em cima de uma moto movida à pressão por um equipamento que, apertado, produzia ar, fazendo-o saltar em uma rampa. Ganhava a brincadeira quem fizesse o boneco voar mais longe. Ora, que novidade incrível aquela, ainda mais em razão de não termos um briquedo daquele, que era caro e estava além das nossas posses.
Quando íamos saindo, a mamãe me deu umas atribuições e apenas o Cadinho pode ir brincar. Chateado, fui fazer o que me foi determinado e passei a manhã toda nessa tarefa. Por volta do meio-dia, a mamãe me mandou ir à casa do Serginho com uma exclusiva missão: chamar o Cadinho para tomar banho e irmos à escola depois do almoço. Fui. Quando cheguei, dei de cara com o novo brinquedo. O motoqueiro laranja, a moto prateada, a competição para ver quem o arremassava mais longe sobre a rampa... Meus olhos brilharam. Esqueci o que fora fazer lá. Entrei na brincadeira, no corredor da casa da Dona Hélia, que dava para a sala, com o seu piso de cimento vermelho. E rimos muito. Eu, feliz, via aquele novo brinquedo, fora da nossa realidade da época, com grande fascinação.
Veio a Irene, a nossa empregada, que funcionou para mim como uma babá também. A mamãe mandava nos chamar para irmos ao colégio estudar. -"Espere um pouquinho...". E a Irene foi embora sem a gente. O pouquinho virou muito e o tempo passava sem sentirmos. E tome salto da moto, e tome risos, e tome esquecimento da hora... Aí veio a mamãe. Já eram 15 horas. Fizemos o percurso da casa da Dona Hélia para a nossa casa nas pontas dos pés, erguidos pelas orelhas. Um recorde! Ao chegarmos, a mamãe tirou a sua confortável chinela de couro e nos agraciou com palmadas, as quais não encontravam as nossas nádegas, porque pulávamos muito. Onde ela batia, acertava, fosse aonde fosse. O Cado usava uma técnica defensiva inteligente: chorava com um bocão enorme, antes mesmo de qualquer palmada abatê-lo. Com o choro, o ânimo sancionador diminuia e os meus pais abrandavam a pisa. Aliás, era engraçado (pensando hoje nisso) quando fazíamos fila, os quatro, por ordem de idade, para entrarmos no cinturão do papai. Eu era sempre o último e podia assistir a performance dos meus irmãos. O Quinho apanhava com resignação do malfeito; a Cacá e o Cado usavam a mesma técnica: choravam antecipadamente e pulavam, com um choro tão desconcertante que o papai já dava o castigo por concluído precocemente. Eu, por temperamento, não chorava, nem sob fogo cerrado. E aí o cinturão cobria, eu impava eo papai, cansado, parava, impressionado com a minha tolerância à pressão. Aí ele me dia: " - Rapazinho taludo, está pensando o que da vida?!...".
Fomos para a escola, o Cadinho e eu, com as nádegas e a parte anterior da coxa fervendo das palmadas da mamãe. A Dona Fátima deixou-me entrar e assistir o resto da sua aula. Mas estava, mesmo assim, feliz com o motorama do Serginho, as boas risadas que demos e aquela experiência única para nós.
Não vejo como possa existir educação sem conversa - e tínhamos muita em família - e sem boas palmadas. As palmadas forjam o nosso espírito, dão sentido de limite, geram a responsabilidade pelos erros. Crianças sem limites são os adultos desajustados de amanhã. Apanhei um bocado, porque era uma criança levada. Ouvi muitos conselhos, porém, e fui orientado, sabendo distinguir o certo do errado. Educar é isso: é dar limites, estabelecer as balizas em que os filhos podem andar.
Sou grato aos meus pais por cada palmada, cada cinturãozada que levei. Forjou o meu caráter, ensinou-me os caminhos para crescer, deu-me o senso do que podia e do que não podia, mostrou-me o que era arcar comas conseqüências dos atos.
Hoje, no entanto, há os que pregam a educação edulcorada, em que as palmadas ou os castigos seriam um mal. Não são! Houve uma geração que foi criada sob o manto do trauma: não se podia ralhar, não se podia castigar, para não gerar traumas nas crianças. E o que aconteceu? Adolescentes rebeldes, sem limites, sem respeito, com a desculpa de que os pais não ensinaram nem lhes deram os parâmetros.
Levei muitas palmadas, umas justas outras nem tanto. Mas sempre conversamos, sempre tivemos o diálogo em casa, sempre soubemos os porquês. E aí aprendemos desde cedo a força do olhar do meu pai. Quando chegamos à adolescência, não havia mais pisas, mas havia o olhar com autoridade, que punha limites precisos. O olhar nos falava mais do que qualquer palavra, porque ele já era o sinal bastante.
Amar, amar de verdade, é educar, por limites, ensinar as responsabilidades. Aí os filhos saberão, na vida, o valor dos pais.